Era uma noite extremamente quente, parecia que a cada dia mais. Soprava uma brisa, mas esta ou invés de refrescar tornava o ambiente parecido com um forno. Quente e seco, a poeira era constante, pouco adiantava algumas árvores e um pouco de grama que tinham conseguido cultivar com tanto esforço, o clima desértico ao redor e por quilômetros a fio era mais forte do que o pequeno oásis em meio ao cenário que podia ser chamado de agreste urbano.
Ricardo tentava se aliviar um pouco do calor sentando a beira de um pequeno lago, um dos poucos daquela região que não tinha sido contaminado com dejetos humanos ou algum tipo de produto tóxico. Mas a água também não ajudava muito, o sol escaldante do dia aquecia tudo. Já faziam semanas que não chovia e mesmo para aqueles tempos isso não era comum naquela época do ano. Nestas épocas já não se falava de efeito estufa, mas qualquer um entenderia o que se quer dizer com este termo sem nem ao menos pensar muito. Entendiam porque era como se sentiam, em uma estufa de centenas de quilômetros. Nem os que tinham se aventurado a ir bem longe tinham encontrado um clima muito diferente.
Mas Ricardo se lembrava de tempos melhores, e procurava se refrescar em suas memórias. Ele era um dos mais velhos daquela comuna, chegara a uma idade que poucos alcançavam ou alcançariam nesses tempos de extremos. Ricardo já passava dos 70, e adorava contar as histórias de sua infância onde aquela cidade, hoje quase vazia, era habitada por milhões de pessoas, e de como a vida era diferente de hoje em dia. Mas as suas preferidas eram ainda mais antigas, eram as que seu pai lhe contava sobre a própria infância. Um longínquo século XX que ele não conhecera, um tal de “anos 80” que seu pai contava com tanta paixão, principalmente quando estavam a mesa do jantar enquanto assistiam ao telejornal com as notícias de catástrofes pelo mundo e atrocidades humanas. Mas dessa época maravilhosa que seu pai chamava de anos 80 já havia se passado um século, e esses anos 80 de agora não era nada maravilhoso, era na verdade o que alguns dos habitantes do século XX chamariam de apocalipse.
As histórias sobre seus pais eram recorrentes, apesar de só os menores se interessarem por elas. Mas não era isso o que importava, Ricardo não contava suas histórias para simplesmente entreter os jovens, mas também para viajar de volta aquele tempo onde para ele residia a felicidade. Esse saudosismo com certeza havia herdado de seu pai. Como dizia ele muitas vezes, um velho rabugento mas muito sábio, que se lembrava também se sua juventude como tempos em que se podia viver sem se preocupar com o próximo furacão, seca ou enchente, ou se o que estavam comendo lhe causaria um câncer em poucos anos. Teve idéias muito estranhas para a sociedade onde vivia, mas que nos dias atuais seriam de extrema utilidade. Conhecia muito, tinha passado boa parte da vida em uma biblioteca. Era professor, Seu Murilo, como o chamavam alguns colegas de trabalho, mas os amigos lhe tratavam como Punk, até sua companheira lhe chamava assim as vezes, mas principalmente um grande amigo dos tempos de escola, Tio Roger era como Ricardo lhe chamava. Ricardo naquela época não entendia direito o relacionamento dos dois amigos, sabia que não eram parentes mas se tratavam como irmãos. Hoje sente o mesmo por toda a comunidade da qual faz parte.
Quando contava essa história tinha sempre uma das crianças que perguntava: O que é Punk, tio Ricardo? E a sua mãe? Fale mais sobre sua mãe! E Ricardo sempre respondia com maior prazer sobre sua mãe, seus olhos chegavam a brilhar quando se lembrava daquela doce senhora.
- Bom, punk eram... bem... Ricardo nunca soube explicar muito bem essa parte da história, ele mesmo não compreendia, só sabia o que seu pai lhe contava de sua juventude. Eram jovens – continuava Ricardo – que se vestiam de forma diferente e gostavam de ouvir musica, beber e subverter o sistema. Ricardo não tinha certeza do que queriam dizer essas palavras do século XX, pois agora não havia sistema algum, mas era sempre assim que respondia quando lhe perguntavam sobre o que era punk ou outras coisas que só existiam num passado remoto.
Quando falava de sua mãe Ricardo até tomava um tom diferente na voz, suspirava e as vezes seus olhos chegavam a se encher d’água. Juliana era o nome de sua amada mãe, ou Jú, como costumava ser chamada. Contava que era uma pessoa muito doce e bondosa, que vivia as vezes fora da realidade, enfiada em seus pensamentos, que depois os transformava em livros. Era escritora dona Juliana, e fora ela quem ensinara Ricardo a contar histórias. Diferente do pai, sua mãe era esperançosa, sonhadora, acreditava nas pessoas por pior que as coisas fossem, e sendo assim, era uma pessoas mais agradável de conviver.
Era nessas lembranças que vivia Ricardo, talvez como fazia sua mãe que as vezes se isolava em seu mundo de imaginação ilimitada. Ricardo já não tinha mais forças para ajudar no trabalho braçal da comunidade, muito menos na segurança ou nas expedições para fora da comuna. Mas ainda era útil na vida daquela comunidade, era professor como seu pai, mas a escola era muito diferente daquela onde Seu Murilo lecionava. Esta onde Ricardo era o professor com certeza agradaria muito mais ao velho idealísta. E Ricardo tinha montado-a com base nos ensinamentos do velho Murilo, era uma escola que no século XX se chamaria de libertária.
Naquela noite quente a beira do lago, em que o clima incomodava muito o senhor de cabelos grisalhos e ralos, e em sua volta estavam vários jovens, com idade variadas. Naquela noite concentravam se em maior número os que já passavam pela adolescência, portanto as histórias sobre seus pais e as felicidades da infância não seriam contadas aquela noite. O clima que para qualquer um que conheceu aquela cidade como Ricardo a conhecera seria muito desconfortável, chegando durante o dia ao insuportável, não afetava tanto aos mais jovens, que não conheciam outros tempos.
Para os jovens reunidos ali em volta do lago com os olhos e ouvidos pregados em Ricardo as histórias mais interessantes eram suas aventuras que passara quando tinha uns vinte e poucos anos. Ele chamava aquele tempo de Cataclismo, e dizia só ter sobrevivido a tamanha catástrofe devido aos ensinamentos de seu pai, que para muitos era meio louco com teorias conspiratórias e apocalípticas. Mas o velho estava certo, e o tempo que ele previa como “o inevitável fim do capitalismo” chegou. Não com a Revolução de trabalhadores, como muitos de sua época profetizavam, mas com a destruição do meio ambiente e a morte de bilhões de pessoas pelo mundo todo.
Ricardo estava animado a contar suas aventuras de juventude, apesar de estar muito incomodado com todo aquele calor e tempo seco. Assim ele começou a contar desde quando a vida ainda podia ser chamada de normal, para seus contemporâneos de juventude.
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